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Museus paulistas e a memória ferroviária (*)

17/01/2018 por Avaliador

Por Davidson Panis Kaseker [1]

Os estudos históricos vêm considerando a importância dos objetos e dos espaços – ou “lugares de memória”, na expressão de Pierre Nora (1993), como elementos constitutivos da memória coletiva. Desde que a ampliação do conceito de patrimônio histórico, como nos informa Françoise Choay (2006), passou a incluir também o patrimônio industrial como objeto de culto à memória, há algumas décadas tem sido registrado no Brasil um interesse crescente em relação à preservação da memória do transporte ferroviário no que diz respeito a seus aspectos econômicos, tecnológicos e sociais.

No final dos anos 1980, o Ministério dos Transportes elaborou um projeto destinado à preservação da memória dos transportes no Brasil, identificado pela sigla PRESERVE. O projeto, logo elevado a programa, teve como meta básica reunir a memória da formação dos meios de transporte no país, através da preservação de bens considerados históricos e representativos de cada modo. A proposta contemplava a formação de um Museu Nacional dos Transportes com sede em Brasília (DF), entretanto a iniciativa nunca chegou a se consumar.

De todos os setores da administração indireta responsáveis pelas áreas afins, aquele que abraçou a proposta com maior proficiência foi efetivamente o ferroviário, por meio da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), considerando a natureza do projeto e seus objetivos. O programa contribuiu para a preservação do patrimônio histórico e memorial ferroviário, não se atendo apenas a vagões e locomotivas. As ações do PRESERVE se estenderam a realizações temáticas ligadas à arquitetura, engenharia, iconografia, literatura e cultura ferroviária.

Com a reformulação da RFFSA, em decorrência das iniciativas governamentais visando a sua desestatização, o programa foi esvaziado, aos poucos, até a sua dissolução total. Com a extinção da própria RFFSA, iniciada em 1999 e concluída em 2007, os bens móveis e imóveis considerados não operacionais, incluindo os espaços museológicos, sem nenhum interesse por parte das concessionárias que assumiram os serviços de transportes ferroviários no país, foram posteriormente transferidos para o IPHAN, que foi responsabilizado, sem nenhum acréscimo de recursos orçamentários, pela preservação deste imenso patrimônio, incluindo locomotivas, vagões, carros de passageiros e outros equipamentos, como guindastes, por exemplo, além de mobiliários, bens integrados como relógios, sinos, telégrafos e acervos documentais. Parte considerável deste acervo móvel, nesse ínterim, fora extraviado e/ou incorporado informalmente por instituições museológicas, mantido em repartições burocráticas como bens patrimoniados ou simplesmente foram apropriados por colecionadores.

O patrimônio ferroviário brasileiro, com efeito, somente veio a tornar-se objeto de um processo de valoração cultural demandado pela Lei 11.483/2007 [2], em atenção ao artigo 216 da Constituição Federal de 1988, como portador de referência à memória ferroviária brasileira. Esta lei, no que tange ao patrimônio cultural legado pela RFFSA, estabelece que caberá “ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. No parágrafo 2º do Art. 9º, a lei estabelece que:

A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário serão promovidas mediante:

I – construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos; (Grifo nosso)

II – conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta RFFSA.

Com vistas à preservação do patrimônio ferroviário brasileiro, desde a promulgação da referida lei, tornou-se responsabilidade do IPHAN realizar em todo território nacional um inventário dos bens culturais de natureza material integrantes do patrimônio ferroviário. Com o objetivo de se adotar ações de preservação e divulgação da memória ferroviária brasileira, esta atribuição abrange exemplares de pátios ou esplanadas ferroviárias formadoras dos nós de articulação do sistema de transporte, exemplares de ferramentas e maquinário, acervo museológico e massa do acervo documental existente na RFFSA. A lei, como já referido, não previu recursos orçamentários para o financiamento de tais atividades, senão, dentre outras formas, por meio de recursos captados e canalizados pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC. Por consequência, com a asfixia orçamentária, os museus ferroviários da RFFSA implantados pelo antigo PRESERVE, em grande parte encontram-se fechados, senão  extintos, inviabilizando o acesso público a seus acervos históricos que documentam a evolução dos transportes sobre trilhos no Brasil.

Dos anos 1970 para cá, a iniciativa de entidades como a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) permitiu a salvaguarda de inestimáveis ícones de nossa memória ferroviária. A Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) também realizou o seu quinhão de preservação, criando espaços como o Museu da Companhia Paulista, em Jundiaí, e sua preciosa biblioteca. Existem também os museus criados e mantidos por outras instituições, sendo alguns especializados em memória ferroviária, dentre outros onde objetos do patrimônio ferroviário constituem apenas uma parcela de seu acervo. Há, ainda, centenas de museus históricos instalados em antigas estações ferroviárias, cujas posses foram transferidas para as municipalidades por meio de programa instituído pela Secretaria de Patrimônio da União, órgão responsável por coordenar, controlar e orientar as atividades de apropriação dos imóveis não-operacionais da extinta RFFSA.

Em território paulista, é tarefa inexeqüível, ainda que impostergável, mensurar todas as contribuições das ferrovias que fazem parte da história de São Paulo e foram fundamentais para o desenvolvimento econômico, em especial para a expansão da agricultura no Estado, servindo durante décadas como principal meio de transporte de mercadorias dentro do território paulista. Com cerca de 150 anos de história, a malha ferroviária paulista conta atualmente com aproximadamente cinco mil quilômetros de ferrovia, estando sob controle da iniciativa privada, tendo como operadoras a Ferrovia Centro-Atlântica S.A, a MRS Logística S.A e América Latina Logística Malhas Paulista e Oeste.

À época do auge das ferrovias no país, na década de 1940, São Paulo contava com 17 companhias ferroviárias que, somadas, atingiam a marca de 8.622 quilômetros de trilhos. Ao logo de sua trajetória, o patrimônio ferroviário paulista passou por inúmeros revezes da mesma forma que a sua memória, sofrendo um contínuo processo de sucateamento desde a década de 1950, quando o país optou por priorizar a matriz de transporte rodoviário.

Dentre as ações preservacionistas que constituem honrosas exceções, está a do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que preserva documentos textuais, iconográficos e cartográficos que testemunham a história das ferrovias paulistas e mantém atividades visando à difusão do acervo e à exploração de algumas possibilidades de uso de documentos de arquivos em sala de aula, disponibilizando propostas pedagógicas que envolvem a temática das ferrovias a serem desenvolvidas por professores em ambiente escolar. Também merece destaque o projeto Memória Ferroviária (1869 – 1971), desenvolvido desde 2012 pelo Condephaat em parceria com a Unesp e apoio financeiro da FAPESP. Coordenado pelo Prof. Dr. E. Romero de Oliveira (UNESP/FCL, Campus de Assis) e composto pelo grupo de pesquisa “Cultura e Sociedade”, o projeto tem como meta principal a elaboração de um inventário integral do patrimônio industrial vinculado com os complexos ferroviários de São Paulo, priorizando concretamente os de Jundiaí, Rio Claro, Campinas, Sorocaba e Mairinque.

O Projeto Memória Ferroviária é a continuação de um trabalho amplo e distribuído no tempo, que se sobrepõe aos resultados de projetos anteriores, como “Memória do Povoamento” (2007) e “Memória Ferroviária” (2009-2011). Já foram alcançados importantes resultados, como o desenvolvimento de uma primeira plataforma SIG (Sistema de Informação Geográfica), um inventário documental sobre as companhias ferroviárias paulistas – cuja base de dados se compõe de 19.391 itens; e um sistema terminológico capaz de gerar um thesaurus industrial ferroviário. Na mesma linha de atividades acadêmicas, há que se fazer menção às dissertações de mestrado e teses de doutorado realizadas pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em especial ao Laboratório de Arqueologia Pública, responsável pelas Jornadas do Patrimônio Ferroviário.

Para além de quase duas centenas de teses e dissertações sobre o tema nas universidades públicas e privadas, sendo quase metade desenvolvida em universidades paulistas, na última década a preocupação com a preservação do patrimônio ferroviário, assim como a história ferroviária, tem sido alvo de inúmeras publicações de livros, blogs e sites, além de jornais e revistas, demonstrando o interesse crescente no Brasil pelo assunto.

Nesse sentido, somando esforços em favor da preservação da memória ferroviária paulista, o Grupo Técnico de Coordenação do Sistema Estadual de Museus de São Paulo (GTC SISEM-SP), instância da Secretaria Estadual da Cultura que congrega e articula os museus do Estado de São Paulo com o objetivo de promover a qualificação e o fortalecimento institucional em favor da preservação, pesquisa e difusão do acervo museológico paulista, tem oferecido ações de capacitação técnica para as equipes que atuam nos museus, assim como ações de assessoramento técnico, acesso a publicações e a linhas de fomento, por meio dos editais ProAc Museus destinados à preservação e difusão de acervos. No ano de 2015, o SISEM-SP contemplou uma ação de articulação dos museus ferroviários, visando à formação de uma rede temática desta tipologia, dentro do Programa de Modernização de Museus.

O objetivo é estimular a preservação de acervos museológicos que se reportam às ferrovias paulistas que, desde o final do século XIX, abriram caminho para o avanço da modernidade no interior paulista, não apenas como elemento transformador e modelador da paisagem urbana, como também como sistema de transição para o trabalho assalariado, o que compreende ampliar a visão da dimensão simbólica do trem e da ferrovia, em geral associada a um apanágio da economia pré-capitalista brasileira – “ferrovia é progresso” (Zambello, 2005) -, alargando os seus horizontes para alcançar a dimensão humana e social dos trabalhadores que, em sucessivas gerações, participaram de sua (des)construção, constituindo um imaginário com os quais se mantêm laços afetivos que ainda hoje mobilizam muito fortemente a sociedade paulista.

O produto final do que se denominou Projeto Museus e Memória Ferroviária foi a elaboração de um portal eletrônico que pudesse reunir num único website [3] informações referenciais dos museus ferroviários paulistas. A partir do diagnóstico de que os dados relativos aos acervos museológicos da memória ferroviária careciam de maior visibilidade, facilitando-lhes o acesso de pesquisadores e do público em geral, formulou-se a proposta de construção de um portal que atue como vitrine virtual para difusão dos museus ferroviários, tornando ainda mais vasta a amplitude das informações produzidas por eles. O portal veiculará informações textuais, fac-símiles de documentos escritos, imagens de objetos de acervos, iconografias, cartografias e abrigará um banco de dados, disponibilizando arquivos contendo dados técnicos e estudos teóricos disponíveis para download. Permitirá a troca de informações via intranet entre os profissionais desses museus e, por meio de canal de comunicação com o público, atenderá a pesquisadores, escolares e demais interessados.

A proposta é prestar serviços de diversas categorias, concentrando-se sobre as próprias instituições nele representadas, seguindo uma padronização hierárquica de informações com a finalidade de facilitar a leitura do usuário, levando-o com maior rapidez ao seu destino. Por meio de um chat viabiliza-se a possibilidade de desenvolver diálogos em tempo real com a participação de várias pessoas ao mesmo tempo, atraindo pessoas de todas as idades e diferentes perfis, por todo o mundo. Outra ferramenta importante para promover a interatividade está assegurada pela criação de um blog para divulgação de notícias em tempo real e a disponibilização de links para sites com temáticas afins.

Num primeiro momento, foram contatados os dirigentes responsáveis pelos museus ferroviários que se encontram abertos ao público no Estado de São Paulo para que se integrassem à iniciativa. Neste grupo, estão o Museu da Companhia Paulista, de Jundiaí, inaugurado em 9 de março de 1979 como Museu Ferroviário Barão de Mauá e depois reaberto em 1995 com novas bases museológicas; o Museu Ferroviário Regional de Bauru, inaugurado em 26 de agosto de 1989; o Museu da Estrada de Ferro Sorocabana, inaugurado em Sorocaba, em 29 de novembro de 1997; o Museu Ferroviário de Indaiatuba, inaugurado em 01 de outubro de 2004; o Museu Ferroviário de Araraquara, inaugurado em 26 de agosto de 2011, e o Museu Ferroviário de São Simão, inaugurado em 11 de novembro de 2011.

Outros museus que detêm acervos importantes serão contatados com a perspectiva de se integrarem à iniciativa numa segunda fase. Neste grupo, dentre outros estão o Museu Tecnológico Ferroviário da Vila de Paranapiacaba e os museus dinâmicos de Campinas e Jaguariúna, todos estes sob a direção da ABPF-SP.

Museus que também abrigam acervos ferroviários, como os museus históricos e museus de cidade, da mesma forma posteriormente serão chamados a se integrar de algum modo a esta iniciativa, assim como os museus que estão sediados em estações ferroviárias, mesmo que, para além da própria edificação, não necessariamente preservem acervos museológicos dessa natureza.

Mais importante, ainda, é o propósito do projeto, desenvolvido em parceria com a ACAM Portinari, que prevê a entrega da gestão de conteúdo do portal para um núcleo gestor formado por representantes dos museus ferroviários, agregando à ação um caráter de corresponsabilidade diretamente exercida pelos próprios museus.

Não se trata de uma iniciativa isolada, ao contrário pretende-se somar às políticas públicas empreendidas por vários órgãos governamentais (IPHAN, IBRAM, Arquivo Público do Estado, CONDEPHAAT, UPPM/SEC) articuladas com iniciativas da sociedade civil para o resgate do patrimônio ferroviário, alinhando-se às diversas ações em andamento.

REDE TEMÁTICA

O cenário museal evolui com grande pulsação no mundo contemporâneo, um fenômeno que evidencia transformações profundas que não se limitam a ações episódicas. No Brasil, ao longo das duas últimas décadas, seja por meio de criação e execução de políticas públicas estruturantes seja pelo protagonismo de museus que investiram na formação e expansão de públicos, o setor tem se destacado como referência cultural no campo da mediação da memória e das identidades plurais. Não obstante, o reconhecimento dos museus como equipamento cultural de mobilização social nos coloca diante de novos desafios. Sabemos que o setor museológico apresenta-se ainda hoje muito heterogêneo, com estágios bastante distintos de maturidade institucional e, consequentemente, com demandas específicas e diversificadas que requerem atenção.

A emergência de redes destinadas à integração dos museus corresponde, pois, a um esforço de ampliar o campo de ação dos mecanismos de desenvolvimento das instituições museológicas e por isso mesmo tem sido apontada como um recurso indispensável para enfrentar os desafios impostos pela diversidade e multiplicidade das demandas da área.

“A rede é expansível, podendo incluir outras redes”. André Parente (Parente, 2010, apud Mizukami, 2014) coloca que “somos uma rede de redes (multiplicidade), cada rede remetendo a outras redes de natureza diversa (heterogênese), em um processo autorreferente (autopoiesis)”, lembra Mizukami (2014). É imprescindível potencializar, portanto, as possibilidades de integração dos demais museus públicos e privados nos processos de fortalecimento das redes temáticas dos museus paulistas. Fortalecimento que se dá, sobretudo, quando se articulam horizontalmente todos os entes de distintas naturezas e escalas institucionais, cada um constituindo-se um nó, capaz de estabelecer conectividade com o todo.

Museus de arte, museus de ciências e tecnologia, museus históricos, museus de imagem e de som, museus etnográficos e arqueológicos, museus comunitários, museus-casa, museus de cidade e museus ferroviários, entre outras tipologias, têm especificidades temáticas que os unem entre si, além de temáticas transversais que os inserem no contexto mais amplo da museologia. Com este entendimento, o estímulo às redes temáticas é uma das diretrizes do Plano Nacional Setorial de Museus e constitui uma das metas estratégicas do Sistema Estadual de Museus de São Paulo (SISEM-SP).

Promover a criação de redes de integração de museus monotemáticos, apoiadas pelo poder público com o objetivo de fortalecer e ampliar o desenvolvimento museológico, na prática significa articular entre os museus o intercâmbio de informações e o compartilhamento de esforços para a realização conjunta de exposições, oficinas, cursos de capacitação, ações culturais, conferências e eventos científicos que atendam as demandas específicas de cada tipologia museal.

Para o Grupo Técnico de Coordenação do SISEM-SP, esse é um desafio estratégico para o fortalecimento do próprio sistema. Além do estímulo à aproximação e ao diálogo interinstitucional, apresentam-se como prioridades a discussão e formulação de uma metodologia de trabalho que contemple ações continuadas e a fidelização/comprometimento das equipes museológicas. No caso dos museus ferroviários, implica produzir o (re)conhecimento da história da nossa sociedade, bem como das tecnologias, relações de trabalho e tradições culturais desenvolvidas pela ferrovia.

Fortalecer a rede de museus ferroviários implica, portanto, promover a formação de uma consciência preservadora, fruto da compreensão do valor do patrimônio cultural em geral e do patrimônio ferroviário em particular, gerando uma atuação ampla e coletiva de diversos segmentos sociais. Mais do que isso, implica  apostar na ressignificação do acervo ferroviário do ponto de vista contemporâneo, recolocando na pauta de debate da sociedade o papel da ferrovia como vetor de mobilidade urbana e matriz de transporte de cargas.

Mais recentemente, os governos federal e estadual anunciaram projetos ferroviários para São Paulo. Enquanto a União aposta no trem de alta velocidade para ligar Campinas, São Paulo e o Rio de Janeiro, o Estado deposita seus esforços nos trens regionais para ligar a capital a Santos, Sorocaba e Jundiaí. Tais iniciativas, como outras que objetivam a expansão das linhas de trens turísticos mantidas pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), têm sido objeto de mobilização política de parlamentares paulistas e, a despeito da recessão econômica, continuam demandando investimentos pelo potencial que apresentam como vetores da retomada de crescimento econômico.

Em 2015, com efeito, a indústria ferroviária apresentou dados positivos. Segundo dados da Associação Brasileira de Indústria Ferroviária (ABIFER), o volume de vagões para o transporte de carga teve um aumento de 18% em relação à previsão para o ano, com a entrega de 4.708 unidades.  Em relação às locomotivas, o volume entregue no ano chegou a 110 unidades, 22% acima da previsão, superior também às 80 locomotivas entregues em 2014. Já no setor de passageiros, a entrega de carros sofreu redução de 20% em relação ao previsto, com um volume total de 337 unidades. Neste número, estão contabilizados metrô, monotrilhos e VLTs [4].

Não é por menos que representantes da indústria ferroviária apostam que o setor se manterá estável, apesar da crise. Para o próximo ano, estima-se a produção e entrega de quatro mil vagões (50 destes para exportação), 100 locomotivas (10 para exportação), 473 carros de passageiros e VLTs (72 carros para exportação). A estimativa de faturamento, por sua vez, deve se manter no mesmo patamar de 2015, em torno de R$ 5,5 bilhões.

Relançada em junho último, a Frente Parlamentar em Defesa da Malha Ferroviária Paulista contesta o fato de que, apesar de sua importância mundial, o modal ferroviário esteja apenas em terceiro lugar em importância no Brasil. A bandeira que mobiliza esta frente é a luta para transformar o Estado de São Paulo em um modelo para o país no campo das ferrovias, não só no que diz respeito ao transporte de cargas, mas também em relação ao transporte de passageiros e não apenas nas regiões metropolitanas.

Problematizar estas questões é papel do museu que assume um lugar privilegiado no mundo contemporâneo enquanto arena onde são debatidas as grandes questões da sociedade pós-moderna. A relação entre ferrovia e desenvolvimento urbano, com efeito, tem sido largamente pesquisada como marca do fortalecimento do Estado de São Paulo a partir do trinômio: cultura cafeeira, expansão ferroviária e crescimento populacional, ocupando mesmo, via de regra, papel de destaque “no crescimento e formação das cidades ampliando a população e a demanda por serviços e comércio, estimulando as trocas, encurtando as distâncias, alterando a noção de temporalidade e introduzindo a velocidade como dado permanente dos modos de vida instituídos com o advento do capitalismo. A ferrovia materializa o triunfo da técnica e a incorpora no cotidiano urbano, cria novos personagens e é essencial na organização do mundo do trabalho” [5].

Ulpiano Bezerra de Meneses (1985/1986), para reiterar o museu como lugar de debate dos problemas históricos que afetam o território, defende que “o museu não seja nem espaço mistificador do passado nem um diluidor de contradições sociais”. Não pode o museu “girar num mundo próprio, climatizado como passado luzidio e asséptico”, dizia Jorge Hardoy, urbanista e historiador da urbanização das Américas ao participar em 1972 da Mesa-Redonda de Santiago do Chile, sobre o tema ‘A importância e desenvolvimento do museu no mundo contemporâneo’ [6].

Temas perturbadores como a marginalidade, crise habitacional, poluição, escassez de água, violência, tensões sociais, especulação imobiliária e mobilidade urbana, segundo Meneses, devem fazer parte da realidade operada pelo museu ao lado de temas tradicionais tidos como inofensivos. Como falar da função educadora do museu se a educação não é vista como enquanto processo de formação de consciência crítica?

Nessa linha, argumenta Meneses, o museu tem que tomar como objeto a própria cidade “como forma, como lugar de ação de forças sociais e como imagem”.  Nesse sentido, os museus ferroviários compartilham certos aspectos e similaridades com os museus de cidade e, assim como estes, também estão sendo demandados pelos desafios da sociedade pós-moderna, que lhes cobra o engajamento no “processo de democratização, de ressignificação e de apropriação cultural”, como adverte Mário Chagas:

Já não se trata apenas de democratizar o acesso aos museus instituídos, mas sim de democratizar o próprio museu compreendido como tecnologia, como ferramenta de trabalho, como dispositivo estratégico para uma relação nova, criativa e participativa com o passado, o presente e o futuro. (Chagas, 2011)

No caso dos museus ferroviários, em última instância a democratização do museu passaria pelo seu assenhoreamento e apropriação pela ‘família ferroviária’, compreendida pelo conjunto formado pelos ferroviários em serviço, ex-ferroviários e seus agregados, uma gente que se orgulha de dizer que corre ferrugem em suas veias. Quem não tem um avô, um pai ou conhecido que já não foi ferroviário?

As múltiplas possibilidades de uso e serventias do museu convergem para um denominador comum: o museu é sempre um espaço que estabelece uma intermediação institucionalizada entre o indivíduo e objetos, sejam eles materiais ou imateriais. O museu é por assim dizer o lugar próprio organizado para coletar objetos, preservá-los e os classificar, estudar, expor e comunicá-los ao público, que deles se apropria por intermédio de múltiplas formas de fruição: o devaneio, a contemplação estética, a expansão da afetividade, o exercício lúdico e, como ressalta Meneses, dentro dessa multiplicidade, há uma a qual o museu deveria constituir como marca característica: o conhecimento. “No museu os objetos se transformam, todos, em documentos, isto é, objetos que assumem como papel principal o de fornecer informação, ainda que, para isso, tenham de perder a serventia para a qual foram concebidos ou que definiu a sua trajetória” (Meneses, 1984/1985).

Para que e para quem os museus precisam inovar suas práticas? De que forma os museus podem funcionar como espaços de apropriação e produção de processos criativos e coletivos? Qual seu papel no processo de formação de cidadãos para uma vivência plena da democracia e com habilidade para a participação nas dinâmicas culturais globais?

No caso específico dos museus ferroviários, o desafio do discurso expositivo é o de conciliar a celebração das personagens, a evocação e a memória de seus protagonistas a partir da vinculação biográfica e histórica que estes personagens estabeleceram com seu tempo e seu território. Assim, a concepção de um museu ferroviário não deveria privilegiar apenas e tão somente a reverência nostálgica por intermédio dos objetos agora ressignificados como objetos históricos, mas expandir-se para a referência a problemas históricos inerentes aos vetores de significação e valor que lhes são atribuídos como expressões materiais que reproduzem os conflitos e a condições sociais que nos permitem (re)conhecer a estruturação, funcionamento e, sobretudo, as mudanças da sociedade.

Para além do valor intrínseco dos seus acervos e da importância da função educativa dos museus ferroviários como espaços de produção de conhecimento e de enriquecimento cultural, há que se reconhecer e ressaltar, ainda, a sua importância como equipamento de lazer que atrai tanto visitantes locais como turistas. Com efeito, os museus brasileiros têm se qualificado tanto tecnicamente como em infraestrutura, se tornando cada vez mais um atrativo presente nos roteiros turísticos.

Aprofundando a relação com o turismo e patrimônio cultural, Vasconcellos aponta o papel social do museu ao demonstrar que esse tipo de instituição insere turistas e moradores em atividades culturais passíveis de trocas de experiências. O interesse pelas trocas culturais impulsiona o crescimento do turismo ampliando com isso a procura por produtos culturais que se bem adequados podem contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Segundo Vasconcelos (2006), “em primeiro lugar, devemos reconhecer que o museu pode converter-se em instrumento para fortalecer e problematizar as identidades e a integração das comunidades, promovendo a tolerância, o respeito mútuo e a aceitação da diversidade cultural”. Cientes de sua função social, no entanto, os museus podem tornar-se ferramentas para construir novas alternativas para o desenvolvimento social e econômico, seja em âmbito local, regional ou nacional. Amparados na diversidade cultural, na inclusão social e na inovação, as instituições podem fazer uso de seu caráter agregador para promover cursos, feiras, encontros sobre os conhecimentos locais, a articulação entre diferentes grupos e o incentivo à produção de diferentes bens e serviços com a marca do lugar.

A partir da convicção de que o patrimônio, em toda a sua complexidade decorrente da confluência de inúmeros fatores naturais, culturais e históricos, é um recurso imprescindível para o desenvolvimento, é que o Conselho Internacional de Museus (ICOM), desde 1971, passou a encorajar novas formas de conceber a museologia que consideram o patrimônio, para além do valor cultural e histórico, uma herança que pertence ao capital da comunidade em desenvolvimento.

No limite, estamos falando do direito à memória ferroviária e pelo reconhecimento do direito de empreender a reinvenção dos museus ferroviários como um processo social que valoriza a identidade e o patrimônio cultural transformado em herança, não apenas em sua dimensão melancólica e saudosista de um passado que não tem volta, mas sobretudo como um componente vital para a reinvenção do futuro.

(*) Artigo originalmente publicado no livro Latin American Heritage: Interdisciplinary Dialogues on Brazilian and Argentinian Case Studies, da editora Springer, em 2017.

REFERÊNCIAS

CHAGAS, Mário de Souza. Museus, memórias e movimentos sociais. Cadernos de Museologia, nº 41, p. 5/15. Lisboa: ULHT, 2011.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. 4ª ed. São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2006.

INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Museus e turismo: Estratégias de cooperação. Brasília, DF: IBRAM, 2014.

KASEKER, Davidson Panis. Museu, território, desenvolvimento: Diretrizes do processo de musealização na gestão do patrimônio de Itapeva (SP). Orientador José Luiz de Morais. Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo, 2014.

GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste paulista. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. O museu na cidade x a cidade no museu. Para uma abordagem histórica dos museus de cidade. São Paulo, Ver. Bras. de História, v.5, nº 8/9, p. 197-205, set 1984/abr 1985.

MIZUKAMI, Luiz Fernando. Redes e Sistemas de Museus: um estudo a partir do Sistema Estadual de Museus de São Paulo. Orientadora Maria Cristina de Oliveira Bruno. Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo, 2014.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares, In: Projeto História: PUC, n. 10, p. 07-28, dezembro de 1993.

PROCHNOW, Lucas Neves.  O Iphan e o patrimônio ferroviário: a memória ferroviária como instrumento de preservação. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014.

VARINE-BOHAN, Hugues de. As raízes do futuro – O patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.

VASCONCELOS, Camilo de Mello. Turismo e museus. São Paulo: Aleph, 2006.

ZAMBELLO, Marco Henrique. Ferrovia e memória: Estudo sobre o trabalho e a categoria dos antigos ferroviários na Vila Industrial de Campinas. Orientadora Profa. Dra. Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins. Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo, 2005.

[1] Davidson Panis Kaseker é museólogo e diretor do Sistema Estadual de Museus de São Paulo (SISEM SP) / Secretaria Estadual da Cultura.

[2] BRASIL. Lei nº 11.493/07, de 31 de maio de 2007. Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11483.htm. Acessado em 20.01.2016.

[3] Disponível em www.museusferroviarios.net.br

[4] Disponível em http://www.abifer.org.br/Noticia_Detalhe.aspx?codi=19223&tp=1. Acessado em 18.01.2016.

[5] Lanna, Ana Lúcia Duarte. Cidades e ferrovias no Brasil do século XIX – algumas reflexões sobre a diversidade dos significados sociais e impactos urbanos: Jundiaí e Campinas. Disponível em http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/shcu/article/viewFile/883/858. Acessado em 20.01.2016.

[6] Mesa redonda sobre la importancia y el desarrollo de los museos en el mundo contemporáneo: Mesa Redonda de Santiago de Chile, 1972 / José do Nascimento Junior, Alan Trampe, Paula Assunção dos Santos (Organización). – Brasília: Ibram/MinC;Programa Ibermuseos, 2012. v.1 ; 235 p. ; 31 cm. ISBN: 978-85-63078-26-1.

Cat: Geral

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